27.1.07

Não só "porque sim"...

Embora este assunto seja de importância (que pode ser colocada em causa quando é levada a referendo), a verdade é que todos nós já nos habituámos a que os abortos aconteçam um pouco por todo o lado, sem que isso nos faça pensar sobre a sua penalização, uma vez que a lei que temos, à força de ser obsoleta, nunca – ou raramente – é aplicada.
Aqui reside o meu primeiro argumento para votar “sim”: uma lei que não é aplicada não é lei, é adereço que cobre a hipocrisia moral.

A lei não é aplicada por muitas razões e não apenas por pudor moral do nosso sistema de Justiça. Acontece, como sabemos, que a opção pelo aborto é uma decisão singular que facilmente foge a qualquer controlo. Proliferam as “clínicas” e “consultórios” particulares nos quais médicos, enfermeiros ou, embora em menor escala, curiosos realizam a interrupção da gravidez. Quase todos nós sabemos onde ir caso precisássemos de abortar.
Aqui reside o meu segundo argumento: quem quer abortar, seja em que estado de gestação estiver, pode fazê-lo, por preços que variam dependendo da carteira e, por isso, das qualidades sanitárias, abrindo para o fosso social entre pobres e ricos e todas as consequências que daí advêm e, no mesmo lance, engrossando a conta daqueles que o efectuam. A entrada de mulheres frágeis socialmente no sistema nacional de saúde, que se sentem sozinhas, pode, inclusive, levá-las a não abortarem.

Antes de passar a outros argumentos que me levam a votar “Sim” , gostava de clarificar um ponto importante, que tem sido um dos cavalos (de areia) dos movimentos do “Não”. Ninguém, em sua plena consciência, é favor do aborto e somos todos a favor da vida, que para mim é um dos grandes mistérios e milagres da natureza. O aborto não é um fim em si mesmo, mas uma decisão difícil de tomar por quem a ele recorre, mesmo mulheres que, racionalmente, tenham presente que ainda não há vida humana efectiva mas apenas em potência. Obviamente, como em tudo, haverá alguém que recorra a este meio de modo sistemático, mas isso nunca será argumento para penalizar o todo em favor da excepção. Se assim fosse, o mundo tornar-se-ia insuportável. E, por isso, ainda não compreendi o papão que se usa e abusa em relação a uma pretensa “liberalização do aborto” – alguém me pode, por favor, explicar de que é que estão a falar?

O meu terceiro argumento, transcende a moralidade, fixando-se nos aspectos biológicos. Apesar do juramento de Hipócrates, que tem sido usado por alguma classe médica (poucos) em prol do “Não”, todos sabemos o que significa, em termos latos, “desligar a máquina”. Este desligar é utilizado pelos médicos quando há morte cerebral, mesmo que outros órgãos do corpo ainda funcionem. Ou seja, em termos mais práticos, se eu tiver um acidente que me coloque numa cama em estado vegetativo, sem vida cerebral, mesmo que o meu coração ainda bata, sou considerada morta e “desligada da máquina” (que substitui, no funcionamento dos órgãos, o meu cérebro). Ora, até às 10 semanas (e penso que é até às 10 semanas porque nesta altura já se pode diagnosticar doenças como o síndroma de Down), ainda não há formação do tronco cerebral, nem sequer ainda se pode falar de feto mas de apenas de embrião; não haverá morte cerebral, mas também não há vida: há pré-vida ou, se quiserem, vida em potência (passo o exemplo, um pinhão é um pinheiro em potência). Utilizar, portanto, o argumento do juramento de Hipócrates ou mesmo o do coração que bate no ser humano em potência (batimentos que só são nítidos a partir da 14ª semana) é de uma hipocrisia imensa e de uma falta de seriedade que só serve no exercício da má retórica.

Outro argumento que tem sustentado os defensores do “Não” tem que ver, também, com a prática médica e a saúde pública em geral, extrapolando o argumento frágil da vida desde o momento de concepção. Este argumento será o da despesa pública com a saúde. Afinal, o que parece importar já não é a vida mas o dinheiro que se gastará, segundo eles, mal, com as mulheres que decidem abortar. Este argumento é tão pateta que não merece grande reflexão da minha parte, mas é também pernicioso porque nos pode levar, em última análise, à pura tecnocracia da saúde. Afinal, muitos dos que estão hospitalizados (e a gastar dinheiro ao estado) também sofrem de doenças que poderiam ter evitado (alimentação equilibrada, não fumar, não beber, praticar desporto, etc.): por esta ordem de ideias, dever-se-ia defender que estas pessoas não deviam ter a possibilidade de se tratarem nos hospitais públicos. Resta, ainda, acrescentar, que os tratamentos hospitalares, que não raras vezes obrigam a internamento, a que algumas mulheres têm de recorrer, têm origem em abortos mal realizados.

Outro argumento que anima a defesa do “Não” é que a lei que já está em vigor (curiosamente, contra o tal código deontológico médico em vigor) em relação à interrupção da gravidez é suficiente. Este argumento contradiz o tal argumento do “sim à vida”, mostrando a hipocrisia em nome não sei bem de quê. Se a lei em vigor é suficiente e esta que agora se propõe é contra vida, quer isso dizer que há vidas de primeira e vidas de segunda, quer isso dizer que uma vida de um deficiente é menor do que a vida de um embrião sem anomalias, quer dizer que o filho de uma mãe violada é de menor qualidade do que uma que não o foi. Mais: actualmente, a lei prevê o aborto legal em mulheres em risco de vida, optando-se sempre pela vida da mulher em detrimento do embrião ou feto. Se, de facto, esta gente acredita que já há pessoa humana, com direitos, como se resolve este dilema ético: a vida da mãe há-de ser mais importante do que a vida do filho porquê?
Se me aparecer alguém que, defendendo o “Não”, me diga que é contra e qualquer aborto, seja em que condições for, aí não me sentiria tão ofendida intelectualmente, mesmo não concordando com ela, por razões, para mim, óbvias.


Contudo, o meu principal argumento, que parte desta pré-compreensão deste tema complexo, que deve transcender a moral e a política, é o da capacidade de decisão da mulher. Este é um argumento difícil, mas parece-me que é aqui que reside o busílis da questão. Não querendo cair no feminismo, tão nefasto à discussão como o machismo, a verdade é que me parece que muitos são aqueles que ainda não vêem a mulher como digna e capaz de decidir. Não sou da opinião de que a mulher tenha de decidir sozinha o destino do filho que carrega, simplesmente porque a natureza dos corpos não deve ser utilizada como argumento válido (nem nesta questão, nem na que anima as teorias do “sexo forte” – aliás, parece ser esta confusão entre o natural e o humano que está na base, não só, de todas as diferenças do género, desde antes da Bíblia, mas também de todas as xenofobias e racismos). Contudo, é no corpo da mulher que se concebe a vida e será dela sempre a última decisão, isolada ou acompanhada. Posto isto, a questão de optar pelo “Não” é dizer às mulheres do país que não podem interferir no seu próprio corpo e, porque não somos apenas corpo, na sua vida enquanto cidadãs. O “sim”, pelo contrário, dá a possibilidade às mulheres de escolherem por si, enquanto cidadãs responsáveis. Este filme já o vimos quando surgiu a pílula contraceptiva, que foi motor da emancipação da mulher.
Quando os defensores do “Não” argumentam que as mulheres não têm capacidade de decidir e quem aborta está a ser irresponsável, está a dizer, também, que essas mulheres devem ter a criança mesmo sendo mulheres irresponsáveis e, provavelmente, péssimas mães. E, aqui, caímos num outro preconceito: que as mulheres, por serem parturientes, serão boas mães. Como sabemos isso é mentira: há mulheres que infligem sevícias aos filhos, que os violam, que os negligenciam, da mesma forma que homens.
E, perante isto, já oiço os defensores do “Não”, tal quando aquando do referendo de 98, que há instituições que podem tomar conta das crianças, como se tudo isto fizesse parte de um romance cor-de-rosa e não estivéssemos a falar da mesma realidade social.

É por ser pela vida, não a qualquer preço, mas com dignidade, como o disposto na Declaração dos Direitos Humanos, que votarei “Sim” no dia 11 de Fevereiro. No entanto, como reconheço capacidades intelectuais a muitos dos que votarão “Não”, mesmo entre amigos e pessoas que admiro, gostaria de ouvir apenas um argumento válido, sem resquícios de moralidade bacoca, para, pelo menos, reconhecer alguma seriedade neste debate.


(Por moralidade bacoca entendo a falsa moralidade e não propriamente a veiculada pela religião católica. A Igreja é um todo que vai além da sua posição oficial, existindo várias alas e várias posições tanto em relação a esta questão como em relação à contracepção, eutanásia ou mesmo opções sexuais. Lamento, no entanto, e enquanto cristã, as posições que têm vindo por parte de alguns responsáveis religiosos do país, que equiparam o aborto à pena de morte e falam de excomunhão.)
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Só depois de escrever este texto, li o post do Gato em relação a este tema. Compreendo muito bem o que sente, mas há que não misturar as coisas. O drama de um aborto, seja voluntário seja espontâneo, reside no facto de imaginarmos a vida em acto quando ela ainda é potência; explico-me: quando uma mulher está grávida e perde ou interrompe essa gravidez a dor que sente será a de imaginar como seria essa criança (o seu sorriso, as suas mãos, o seu futuro), mesmo que essa criança ainda não exista. Da mesma forma, quando olhamos para alguém, criança ou adulto, e imaginamos a sua não-existência, estamos a incorrer num erro lógico: se ela nunca tivesse existido nunca teríamos de pensar na sua inexistência. É normal e humano que, no caso apresentado pelo Gato, se pense que era um erro não ter tido aquela criança, mas, sejamos claros, só assim pensa e sente porque essa criança está aí, efectiva, e não como mera possibilidade (aliás, bastava o momento de concepção ser diferente para já não ser essa criança mas outra). Penso que não conseguir diferenciar isto com clareza é o que leva muitos a votarem contra a despenalização do aborto; de facto, se fizermos esta confusão quem aborta parece ser o pior dos verdugos.

8 Comments:

At 1/27/2007 05:05:00 da tarde, Blogger D'artagnan said...

Lua, segunda feira prometo que vou dedicar 15 minutos para ler o post, até lá, bom fima-de-semana para todos

 
At 1/27/2007 05:12:00 da tarde, Blogger lua-de-mel-lua-de-fel said...

LOL; para a próxima tento fazer em bd, sempre é mais simples e de mais fácil digestão. Bom fim-de-semana.

 
At 1/27/2007 07:11:00 da tarde, Blogger Jerico & Albardas, Lda. said...

E eu só quero dar os parabéns pelo texto e sair de mansinho para não estragar nada.

 
At 1/27/2007 08:01:00 da tarde, Blogger Sentinel' Alerta said...

Quem assim escreve não precisa de falar!... Que saudades eu tinha, cara Lua!
Apareça mais vezes... precisamos do seu "serviço público".
Sobre a despenalização da IVG, nas condições agora propostas, sou de opinião de que a Assembleia da República deveria ter decidido o assunto. A alteração agora proposta não vem obrigar ninguém a seguir esse caminho. Nunca nenhuma mulher que decidiu fazer uma IVG o deixou de fazer e assim irá continuar a ser. A única diferença é a da penalização ou não e o enxovalho público daí decorrente.
Eu considero que a prática de aborto é, em regra, uma má solução, pois a sociedade deveria ter condições para que uma mulher não optasse por essa via. Mas a realidade é bem distinta e nas condições actuais penalizar a mulher é ainda agravar mais a situação desta e daqueles para quem esta já tem obrigações assumidas, filhos, conjuge, ascendentes, etc.
Sobre o papel desempenhado pela Igreja Católica ou por grande números dos seus pastores, não comento nem me afecta pois há muito que deixaram de ser veículo na minha ligação com o Criador. Felizmente...

 
At 1/29/2007 09:22:00 da manhã, Blogger D'artagnan said...

Lua, tal como prometido, dediquei 17 minutos..:))) para ler post com a calma e meditação que ele merece. Um texto destes, por si só, e sem conhecer o seu autor, é de uma tal organização mental, que é dificil de contradizer seja no que for. Confesso que veio dar mais uma achega à minha decisão de voto e que realmente todo o mundo de "nãos" que nos rodeia está emprenhado de moralismo bacoco.

Eu, e pelos vistos, mais algumas pessoas, apenas temos dúvidas quanto à aplicação real de uma aprovação do referendo, ou seja, qual a resposta de um sistema de saúde falido, para atender uma senhora que pretende fazer uma IVG um dia antes de cumprir as 10 semanas (por exemplo).

Obrigado pelo texto e pela clareza de raciocínio, que tantas vezes falta aos nossos políticos de algibeira.

 
At 1/29/2007 03:21:00 da tarde, Blogger Vítor Ramalho said...

Na Rússia o número de abortos já é superior ao número de nascimentos.
Será isto que querem os defensores da pena de morte?

 
At 1/31/2007 12:51:00 da tarde, Blogger lua-de-mel-lua-de-fel said...

Sem pretensões, agradeço os elogios.
Caro sentinela, infelizmente estou limitada de momento ao meu acesso à net, daí a minha fraca participação. ~Sócrates já veio dizer que caso não exista mais do que 50% de votos o assunto vai ser levado à Assembleia; espero que desta vez não se repita o mesmo que aconteceu em 98 e se honre a palavra.
Caro aleixo, os parabéns à sua mãe. Também eu prefiro estar viva do que não existir, mas, lá vamos nós, voltamos a cair na falta de clareza: se o senhor, e/ou eu, nunca tivéssemos existido nada lamentávamos nem ninguém nos lamentava. Infelizmente, há mulheres que decidem abortar e, da mesma forma que dou os parabéns à sua e a todas as mães (algumas delas que tb já abortaram) estou junto daquelas que decidem interromper uma gravidez, reconhecendo-lhes dignidade enquanto mulheres e, antes disso,enquanto seres humanos livres e responsáveis. Caro aleixo, sinceramente, não me estou a ver a realizar um aborto, contudo isso não me dá o direito de julgar outras mulheres e outras realidades diferentes da minha.
Gato, argumentar, contra a despenalização, com o facto dos atrasos no nosso sistema de saúde transcende a questão. Creio que vivemos num estado democrático e razoável e, por isso, tenho a certeza que, caso o sim vença, seja estipulado o protocolo, juntos dos responsáveis da área da saúde, que acompanhe as mulheres e que seja proficiente.

camisa azul, vulgo vitor ramalho, já tive a oportunidade de discutir consigo esta questão e o seu equívoco no blog "fio dos dias", sem que o senhor tivesse saído desse mantra da pena de morte e estivesse disposto a uma discussão racional sobre este assunto.

 
At 1/31/2007 01:27:00 da tarde, Blogger Vítor Ramalho said...

Quando se trata de matar um inocente não existe discução racional.

 

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